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A NOITE É TRISTE

Trabalhos recentes (2007-2009) de João Tengarrinha deixam que (outros que foram mostrados antes, em anos próximos) se insinuem e se apresentem como um futuro anterior; e não exactamente como um reflexo imediato de um passado contínuo. Deste modo, nos dois pisos do Pavilhão Branco do Museu da Cidade, Zebra surge como título de desenhos recentes; e Colher de Ouro sustenta, em título, o conjunto de trabalhos anteriores. Anterioridade futura, imbuída de um constante re-ver-se, a obra dentro da obra que está a ser apresentada. Sendo ela própria condutora de uma espécie de romance, no qual figura, de um modo nebuloso e nocturno a heroína de experiências de espírito que irão estar presentes em práticas (em obras) futuras. É este o sentido de futuro anterior que se reflecte no conjunto de A Noite É Triste. Na qual se pratica, mais do que uma repetição de listagens, um recordar de figuras, todas elas submetidas a um encantamento geométrico.
Fragmentos de listas e de traços são muitas vezes a projecção de uma pujança pontilhista ou de um seu prolongamento quase sonâmbulo. A progressão do ponto, o seu avanço, como que submetido no espaço a uma programação de acaso, deve-se a uma incontida energia, que ao nível do fazer do desenho dá origem ao seu mínimo de existência e ao seu processo de individuação no colectivo da obra. Corresponde ao dealbar de um instante inscrito, da sua condição como acontecer próximo e futuro, e também como elo de constância e de ligação ao que está antes ou ao que poderá ou virá a estar. Quer em termos de partilha do sensível — o que está em estado bruto e ainda não sublimado ou aprisionado pelos próprios sentidos — quer em termos de transformação pela sensibilidade noética. Quanto à extensão sonâmbula a ela se deve um certo prazer lúdico constante que atravessa todo o plano conceptual destas imagens. É motivado pela nocturna intenção da prática que escandiu o cordame do lápis ou do pastel, imbuída da oposição proximidade /distância, criada e desenvolvida pela ideia e sentimento de tristeza.
Tudo começa com uma ascensão de traços e linhas cinzentas: ora se interrompem ora se alongam sob uma tenacidade sequencial. Um rosa vivíssimo, que toca o carmim pode surgir em trabalhos mais recentes. Apresentando-se com estiras espraiadas, em que a cor perde o sentido de limite (grafite e pastel seco sobre papel 200x90cm). São trabalhos de Zebra, sucedâneos de desenhos anteriores em que o negro e o cinzento da grafite se deixou insinuar por uma pesquisa de trama acentuadamente melódica. O efeito repetitivo repercute-se segundo uma articulação de continuidades visuais conseguidas por uma ténue coloração de cinzas e azuis e de um quase transfigurado verde, inscritos em superfícies quadradas (150x150cm) pelo uso do lápis de cor.
Em ambos os espaços e tempos pictóricos que João Tengarrinha apresenta — Colher De Ouro e Zebra — a seriação repetitiva vive de uma fidelidade a um ver e a um constante re-ver que correspondem a um meditação sobre o próprio exercício do desenhar, o qual tem consigo um duplo desempenho: o compromisso com um olhar (auto-)contemplativo (no e) do desenho, que conduz a uma constante tenacidade e a um guardar na intimidade (do próprio desenho) a experiência da repetição. (Repetir tem quase sempre uma frequência de recordar neste trabalho de Tengarrinha.) Ainda dentro dessa duplicidade podemos referir como uma condição de constância a dimensão harmónica de participação quer das listagens quer dos desencontrados pontos de interrupção que entre si exploram uma conseguida e formal emancipação de dissonâncias na austeridade do desenho. Na insistência de uma plácida mobilidade que possibilita a trans-formação e confere a passagem de um a outro desenho o mistério de uma consistência comum: a [sua] noite transfigurada.

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Não é uma simples aproximação do título da exposição ao sexteto (ou ao arranjo para orquestra) de Schönberg com esse mesmo nome. É antes a grande austeridade deste trabalho conseguido através do vocabulário de um método que evoca a severidade e euforia dessa obra musical, transposto para o plano do desenho. Assim os espaços tonais que encontramos e se experimentam na pauta musical aparecem na composição destes desenhos no acordo / desacordo entre inesperados vazios que irrompem a verticalidade da linha ou da figura do traço. Ausência e presença, desenvolvimento e regeneração, consonância e dissonância, ponto e contraponto são formas sequenciais que iluminam uma tenacidade e uma constante experiência da repetição dentro do quadro de cada desenho.
Em alguns trabalhos presentes em Colher De Ouro, o quadrado do desenho é-nos mostrado, no seu resultado final, auto-emoldurado. Ele está dentro de fronteiras estabelecidas, como exigência, pelo próprio desenho. A barra que limita funciona como uma placa de vidro que guarda a linguagem da repetição, isto é, a prova da sua consistência, o modo como se dá a ver e se nomeia em listas de insistência que, a espaços não programados, ao modo de sinapses, se interrompem, para readquirirem as suas próprias resistências, o espírito da sua tonalidade (um continuado cinza, negro, vago azul ou verde) e a harmonia vagabunda da sua continuada energia. Que dura, como foi dito, em algumas das obras, dentro de um quadro determinado pela exigência do próprio isolamento repetitivo.
Segundo uma hierarquização de formas, o equilíbrio remete a um entusiasmo que historicamente podemos encontrar na Bauhaus ou no Neo-Plasticismo e no De Stijl de Van Doesburg e de Mondrian. Sobretudo na linha direita e simples e no sentido que este último lhe quis dar, como expressão de uma estética purificada e abstracta. Também Tengarrinha nos surpreende ao usar agora, e de um modo tão novo (ao ferir a trajectória da linha pelo acaso, por saltos elementares, por densidades não uniformes e por densidades vazias), os parâmetros possibilitados pela linha direita e, sobretudo, pela vertical e pelo uso das não cores que são o preto e o cinza. Mas o trabalho prolonga-se, estende-se através de uma participação que vai de um a outro e a um outro desenho, cujo processo de individuação permanece ainda longínquo. E logo se concretiza no mais recente, pois as passagens de um desenho a outro desenho abrem o seu próprio espaço e dão o seu próprio lugar através de uma aventura silenciosa, representada por pequenos esboços, por pequenos estudos prévios de uma sublimidade subtil. Desse constituir primeiro o desenho como coisa pensada ocorre no conjunto das obras de Zebra uma ascensão da tonalidade rósea e uma saída compulsiva da luz da cor em leve alastramento de mancha para além da repetida e pulsional linha. A cor lança-se além da linha, além da transfiguração da noite. Representa o seu próprio drama, a sua afirmação de tristeza. Proximidade afectiva que podemos estabelecer, agora, com a tensão da linha transformada em engrossada corda de cor que se desloca (num processo sem dúvida bem diverso, mas do mesmo modo convincente) sobre uma cor de fundo nas pinturas de Barnett Newman, sobretudo nas séries que executou ao longo de 1949.

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Não interessa exactamente o que o título A Noite É Triste possa ou não representar. À partida estabelece somente a presença de um monodrama, um eco no tempo do próprio desenho. Entre a «noite» e o que dela é afirmado, o ser «triste» vai um arco, uma estrutura ergue-se no vazio, permanece sozinha no espaço proposto: a exposição: o conjunto dos dois corpos de desenhos: Colher De Ouro e Zebra. Tudo o que se gerou foi um espaço e um tempo de desenho, uma fusão que explora um fluxo de linhas paralelas que, entre si, engendram uma mobilidade mecânica ascendente e descendente a par da claridade lunar e de agitados pressentimentos que irrompem da obscuridade da não cor.
Ritmo, melodia mesmo (que se inscreve no desenho), profundidade, instante espacial, proporcionalidade, infindas direcções dinâmicas levam à fuga da estaticidade do próprio desenho. Levam-no a sair de cena, como se fosse um actor e, todavia, o desenho não passa de uma figura abstracta, no qual o espectador não poderá jamais reconhecer um modelo real. Mais do que o seu espaço na superfície do papel, o desenho das séries Black (2007), Green (2008), Silver (2008) e Zebra (2008), ao sair de si para se visionar enquanto obra, está a trazer para dentro de si o seu próprio tempo; a organizar o seu tempo de visão. Esta deslocação do olhar é a forma de dar uma infinidade de tempo (ou então um só segundo) ao espectador para apreender a obra, enquanto o desenho se concebe, no dizer de Michel Foucault como «invenção de si» e parte indirectamente, pela mão do artista, para um futuro anterior (porque nos seus dados estruturais já está estabelecido como) desenho.
Há neste conjunto desenhado uma evidente arte de viver. João Tengarrinha fundou o conjunto de relações, mas o prazer e o gozo que corre, mesmo no frio da noite entre um e outro desenho, isso é por inteiro coisa nova, subjectividade que perpassa exclusivamente entre os membros agora reunidos em Colher De Ouro e em Zebra.

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Os traços que a grafite expandiu e tornou esborratados, dando ao desenho um clima mais negro e bruto, tornam-se num momento seguinte mais apertados como se interiorizassem uma voz, a um só tempo justa medida e reacção estética: Tens de fazer de ti próprio. Tens de voltar a um lugar que se assemelhe ao lugar anterior, mas que não passe de uma imagem em cima de si mesma geradora de uma outra imagem desfocada; uma outra imagem de traço projectada desde si mesma.
Esta voz de um traço vive entre a caça selvagem e um vago sorriso sob as estrelas, que sempre ocorrem na extensão que percorre o traço nocturno da fria tristeza. Porque os traços que se expressam nestes desenhos movem-se na transparência da abstracção, têm aí a sua casa. Tentativa para tornar visíveis as correlações entre a variedade dos jogos e das soluções repetitivas e a pura linguagem de um pensamento que lhes deu origem. Mas, à semelhança do título que Tengarrinha escolheu e que somente nos serve para chegar a interpretações que se confinam ao silêncio, a procura do verdadeiro sujeito dos seus desenhos, pelo menos destes que estão sob o tecto de A Noite É Triste, repousa no decorrer da sua acção reiterativa: traço ao lado de traço, sob e sobre traço. Traço que inesperadamente quebra o seu contínuo e que, após uma condição de vazio, se reinicia. A sua função de enunciação é sempre fictícia e inessencial, ilusória. Tenderá sempre a fazer da insistência a sua verdade e a sua máscara.

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Uma memória percorre Colher De Ouro e Zebra. Uma pulsão introduz um registo, um depósito, uma poeira do mundo, da arte e do vivido em cada um destes reflectidos traços. Move-os como medium da sua própria linguagem. Passa da acção repetir ao verbo recordar e rever. A memória torna em acto o desenho. Materializa-o. Concretiza-o na sua escrita e na sua arte. Aproxima-o do seu objecto. Dá-lhe a energia de um ser. Transporta-o a um domínio vasto, em que o impulso fundamental da sua existência reside na fluidez e na mobilidade de uma noite no mundo.
João Tengarrinha parte de um pensamento abstracto para a concretização do seu trabalho. Todavia assiste-se, no perseguir o lineamento, a um deslizar efectivo do plano da razão para o da existência. Termos como intuição sensível e sensação (ou mesmo actividade sensível), interesse ou a decisiva paixão pela interioridade ganham mais espaço desde 2007 sobre um traço que procura quebrar uma imediata fisicidade, para se erguer em cada desenho com a sublimidade de Soeren Kierkekaard e a ironia de Max Stirner. O próprio desenho, enquanto arte e expressão maior de um existir, parece querer dizê-lo com uma frase comum a estes dois pensadores: encontrar-se ante o nada.

João Miguel Fernandes Jorge, in “A noite é Triste” exhibition catalog.